"...De tempos a tempos vou a Londres. Tratar de negócios. E um pouco também por estúrdia.
Solteiro, e já dobrado o cabo dos quarenta, não é agora que vou deixar-me naufragar no casamento. Não quer isto dizer que eu defenda, ou haja alguma vez defendido, o amor livre. Nem por sombras. Pois que seria das sociedades, do Registo Civil e dos fotógrafos, sem a nobre instituição do matrimónio?
Não. A razão é muito outra. Provenho de uma casta que converteu o celibato numa segunda natureza. Todos os meus tios, e parece que também um não muito recuado avô, se têm recusado, pelo menos de forma legal, a contribuir para o adensamento demográfico do país. Atitude, convenho, acaso escandalosa, mas à qual, por atavismo, jamais pretendi furtar-me.
A um terno marinheiro anglo-saxónico devo eu o bigode loiro e certo maneirismo britânico. O que não me aviva qualquer orgulho. Sinceramente que não. Tem todavia concorrido, e muito, e deveras, para o meu cada vez mais florescente comércio com a gente londrina.
Ninguém como o inglês cultiva há séculos a xenofobia. Não fosse grega a palavra, e teria por força de ser inglesa. Uma tal aversão aperfeiçoam-na eles ao mais alto grau, saudáveis e engenhosos, mesmo quando, fleumàticamente, por inadiáveis interesses, se obrigam a tolerar o imundo verme estrangeiro.
Pois comigo - e compreende-se porquê - nunca tal aconteceu. Olhando-me, julgam reflectir-se num espelho, ainda que a minha pronúncia os deixe por vezes um tanto perplexos, qual irmão de raça que surpreende no outro, com estranheza, uma inesperada mutação genética.
Quanto a mim... Bem. Sempre considerei os súbditos de Sua Majestade Britânica uns inexcedíveis canalhas. Óptimos negociantes, decerto, mas imperialistas, bêbados e frascários, o que há meio século lhes permitia devassar, com a mais orgulhosa impunidade, não só a casa, mas o cofre, a garrafeira, a mulher e as filhas de cada um. Tudo isto com um método, uma higiene, uma eficácia que a muitos de nós, continentais, se nos afigurava a quinta-essência do saber estar no mundo..."